sábado, 29 de dezembro de 2007

A letra

Está frio, tão frio que a minha letra treme
Trémula se compõe nas folhas
Um berço onde se deita
Para mais tarde falar.

Um copo de luz para aquecer
Recebe-a bem
O calor virá sempre de dentro
Quando o corpo trabalha

E a pele rubra vai aquecendo
Com a letra em plena orgia
De temperaturas e vislumbramentos
É uma segunda ideia

Surgem caminhos por desbravar
Surgem caminhos já embriagados
Os olhos mais vêem o andar do autor
Que a letra dele escorrida

Os tufos de humidade tapam a lua
Antevê-se que vem cheia
Mas o tempo passa e os uivos não se ouvem
O lobo não nasceu ou a história não tem sentido

Está frio e tudo treme
Bem se nota no emaranhado de letras
Donde nada se tira de perceptível
Embrulharam-se para fugir

Foge-se do lobo e do frio
Mas uma volta de um ó tremido
Denuncia um medo
Que não foge de raiva nem procura agasalho

Descai a mão ampara-a
És suficiente para cair para isso perceber
O teu calor não é de aquecer
Cai e verás o que ouves

Milhões de uivos miscelâneas de outroras
A palavra cedeu simples e não há
A minha letra no berço fica,
Mais tarde falará.

in "Profundo Azul"

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

"O poeta faz a vida para depois a vida fazer o poeta."

António Sérgio Godinho

domingo, 23 de dezembro de 2007

Adamastor

Quando o Adamastor vivia noutro hemisfério, longe de saber outras existências e lugares, exercia diariamente o trabalho de porteiro marítimo: uma espécie de guardador dos mares cujo objectivo era o de velar os confins transmarítimos. Comportava-se como um farol cuja luz repelia aqueles que avistasse.
Sentava-se numa rocha elevada com forma de trono, situada num enorme cabo estendido no oceano, adentrando nele. Daí mirava toda a planície marinha.
Quando alguém se aproximava com posse e rosto desconhecidos, desferia ventos fortes do peito afastando fosse o que fosse. Estes ventos ponham os homens de tal modo assustados e fracos que alguns vislumbravam temíveis monstros, gigantes e guerreiros. Rigoroso a cumprir a sua tarefa, nada passava por ele a não ser ondas; as velas torneavam meia volta e seguiam para outros lados, de onde provinham, ou então, os mastros afundavam-se.
Certa vez, um dado número de naus aproximava-se da sua fronteira, decididas a passar por ele. Nelas proferiam-se sonoros diálogos que se espalhavam pelo ar e mar.
Atento às conversas, o Adamastor ria. Porém, o interesse foi subindo. Havia algo naquela pronúncia capaz de transmitir a perfeita ideia de beleza: um lugar à beira rio, magistral e com longas paisagens cheias de cores radiadas do céu. Deveras deslumbrante.
Completamente imbuído nos pensamentos, deixou de atender as naus que penetravam em meridianos desconhecidos. Ainda encheu o peito, o qual disparou um leve suspiro de emoção e sonho. Cansado do trabalho, ergueu-se e partiu à descoberta da cidade referida nos encantos das palavras ouvidas.
Entretanto, nas naus, o júbilo ganhara voz e os marinheiros abriam a porta da imaginação.
À luz do maravilhoso e da epopeia, poetas revigoraram a alma na eternidade da mensagem e da história.

Não foi há muito que o sol andava escondido por pelugens assanhadas. Agora não! Agora, ele mostra-se.
As árvores esganiçadas no céu caracterizam o enredo, um pouco de poluição em redor e demais janelas espalhadas por aí. Cheira a pólen e a folhas do mato, ouvem-se piares e o vento quente rasando nos troncos e tijolos. A carne mais leve e despida desenha voltas nos passeios, voltas trocadas e truncadas como bebedeiras.
Abatem-se mãos ocultas neste longo soalho, fazendo saltar e agitar o sangue, nada mais, desejoso por se alucinar.
Poisadas as armas, descansadas as forças, irritam-se euforias que encaminham sonhos para poleiros e lugares afrodisíacos.
Agarra-se ao volante e ao cinto de segurança e, o fumo faz estrada para as tormentas sem cabo.
Pisa-se o palco, entra-se em cena, o pano corrido e todos os adereços pintam uma paisagem longa, tudo feito ao pormenor; o palco cheio de luz e vistas, não há dúvida, uma janela infinita.
Tão belo miradouro!!! Será das vistas, será da cidade, do rio, será do cheiro, do fumo que se respira, serão as histórias,...as histórias..., será ele próprio? Tão belo miradouro.

Velha e sempre meninamente bonita princesa, teu nome é Lisboa e podia ser nome de flor; meu nome, agora, não interessa.
Teu fado canta-se do Bairro à Sé, a voz e as cordas sempre em coro, deliciando-te com trinados e melodias. Ouvirás, eternamente, a saúde de Amália e Paredes; nem precisas de pedir, suas músicas já correm no ventre do vento.
Queria eu que fosses mulher, não para beijos ou amor, mas para passear, passear de mãos dadas pelos jardins dos Campos, Grande ou Pequeno, passear pelos passeios e pelo rio e, sermos um conto sem palavras.
Que segredos guardas, que se elevam, como ascensão de lava ou onda sísmica e a pedra transforma-se em muralhas, em mortalhas e, para mais, esconderijos?
O grande Adamastor fugiu do cabo porque ouviu falar de ti; não foi vencido. Fugiu do cabo, como já dissera, e foi à tua procura.
Ficou tão deliciado, sentiu-se tão apequenado perante ti que se escondeu na pedra, espreitando com a cabeça de fora, rasgada por um sorriso de menino tímido, sem meter medo.
Na varanda onde se encontra, vê-se a beleza de todo um esplendor, não do país, da natureza.

O fumo bêbado conta histórias, algumas tão velhas que cheiram mal.

Mendigos!

Talvez?!

Suas casas são a rua!

Ou casaram com Lisboa?!

Será?!

Saindo do miradouro, voltando para outro palco, indicado pelos carris do eléctrico, toma-se um café. Com sorte, ainda encontramos o poeta, que tanto escreveu, que tanto deu vida a outros eternizados em palavras.
Um dia, foi ver as vistas, a criação da natureza, a criação do reino, e viu aquele sorriso tímido apelidado de monstro.
Comovido, depois de dedos de conversa, escreveu-lhe uma carta; nessa carta, também ele o chamou de monstro...! Chamou de monstro a esse menino que sorri do seu esconderijo...!

Calma!

Foi o próprio menino que pediu!

A sua história já estava feita e nela ele era grande, muito grande como o tempo, como agora ainda se o vê!

Nas suas escritas bucólicas ou românticas ou como o outro que se suicidou por paixão por tranças loiras..., escreveu a metáfora e a hipérbole de tão linda história do menino que bateu na mãe, do João que mudou a dinastia, dos marinheiros que escreveram a longa poesia da grandiosa expansão...!

No final!

No final de tudo!

Todos acordaram numa madrugada!

in "Madrugada de Cacilheiros"

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O sol desce o pano, minha alma

O sol desce o pano
Minha alma,
Acompanha-o e foge
Do corpo que te prende
E vicia nas visões que te dá.
Embebeda-te de calor e luz
Agonia-te no brilho inexcessivo
De semear primaveras
E crescerem sementes.

Levanta-te e vai,
Sente o erguer da plenitude,
Do vasto esplendor e eternidade.
Procurar leitos para ficar
É suportar noites mal dormidas
Também
E se sabemos que algures
O sol nasce,
Porquê não procurar esse
Parto diário?
Fossemos braços parteiros
E ouviríamos constantemente
A nota afinada da nascença,
A segunda fase da vida
Depois da concepção, da fecundação,
Do êxtase, assim seja!
Renasce, minha alma,
Não fiques a ver o pano descer.

in "Profundo Azul"

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Quem quer que venha

Quem quer que venha
E venha por bem,
Abra a porta e fale calado.
No silêncio das armas
Espalha-se o incenso
De ervas verdes e outras naturezas.
Que se aproveite a paz !
Que se fale no silêncio
E sem palavras,
Deixá-las nas folhas
Que crescem
Para as árvores do futuro.

Sem nada para dizer,
Penso no que devia ter dito
E não disse:
Não havia nada para dizer !
Tudo era irrelevante
A não ser o que se revelava !
Proponha-se um silêncio trocado,
Falado pelos olhos
E a dúvida de tocar ou não.

Quem vier e abra a porta,
Abra a janela também !
Que entre o ar espalhado
Pela sala e outros abandonos.
A madeira castanha
Dos móveis envernizados,
É história por si só.
São rábulas
Que não emigram do ninho,
Mas nada se sabe
Do que move essas rábulas.

in "Profundo Azul"

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

O Rei, a Companhia e o Capitão

Vagueiam latidos pela madrugada. Não há carros rasgando as estradas, também não rolam pernas nos passeios!

A história de um hediondo rei, uma companhia e de um capitão grisalho.

Pêlo roçado de gasta cor e esfolada, os olhos transmitem a plena confiança de quem percorre um vasto reino encontrado e expandido, quando ali ficou à mercê das horas e do tempo.
Nunca se dirá abandonado: um pássaro fugido da gaiola não abandonou a casa, foi procurar o ninho.
Vai deambulando labirintos pelas gentes despejadas nas suas ruas. Arregala o focinho mostrando os carnívoros caninos: um riso de gozo por ver tão cheio o território que conhece até aos tremores.
Gira e gira, muitas voltas giradas, chega sempre ao couto do dono. Ou, pelo contrário. Cuida do homem, ouve todos os segredos sem nunca os revelar, afaga as carícias trocadas por lambidelas, atura as dores de cabeça e mal-estares e suporta os pontapés, já foram muitos de muitos que lhe deram e sempre reagiu com os dentes em profundas vivas gargalhadas. Contudo, esteja frio ou não, enrola a pele oferecendo calor ao corpo que, como ele, ali se despoisou.
A madrugada desenvencilha-se com latidos num silêncio ominoso.
Ladra. Agora, sim. Ladra... de fúria.
O virar da hora revela-se sozinho. A multidão escoou para fora, entrando em todas as paredes cujas respectivas chaves abriram as portas do conchego e da escapatória.
Estavam tão cheias as ruas com ferozes sons a irromperem pelo ar. Subitamente, todo o peso foi levado tal um pião rodando velozmente até se desprender da gravidade expelindo-se da órbita para dentro do fora.
Os resistentes passeiam ainda sendo as vistas apenas visitas ou turvas. Por demais sejam, não assumem qualquer afronto nem tão pouco enchem vagas.
Quase se cansava para andar à volta de si, eram muitas as pontas de pés de que se tinha de desviar afim de evitar mazelas. Ria-se unicamente. Desvalia acender a garganta pois ignorava-se os seus proclames. Retraía o ar oferecendo à carne a força de um destronado rei.
A madrugada dá-lhe a coroa do palco. Onde está a zanga dos golpes? Ladra. Agora, sim. Ladra... de eminência.
Tantos o desafiaram e ocuparam o caminho mas já não se vêem. Desistiram?! Seja o que for. A sua voz eleva-se no silêncio sem contradições, estende-se por ruas largas e estranhas, dobra esquinas e prolonga-se em frente da frente; os latidos voltam a ladrar e voltam a ladrar num eco de infantaria.
É rei. Nunca disso duvidou. Resistiu a todos os assaltos ficando com o palco só para ele. Por direito. É a sua deixa.
O pano continue a tapar os olhos onde discursa tornando a solidão não dele mas do enredo.

Orientando-se segundo pontos cardeais, um pardal e uma pomba juntam-se num espaço bairrista desde a Sra. D. Apolónia dos Comboios às Rotundas do Cais. Ou invés, disjuntam-se. Apesar de estarem sempre juntos, não teve origem em qualquer base de afecto. O que foi, foi a partilha de alimentos e comidas, de poleiros e céu. Porém, rival partilha. Comem da mesma migalha da mesma côdea de pedaço de víveres, mas não é por fraternidade. É ver quem tira primeiro a fome dentro da barriga. Parece um jogo. Tornou-se num jogo jogado a pares.
Estranhavam-se os dois, um ao outro. Tudo: o aspecto, o tamanho, a cor das penas, o piar e mais tudo. Começaram então a afeiçoar-se. Deixava aos poucos de ser uma partilha rival para ser uma real partilha. Ou o jogo. O tal jogo. Os ares e o peso da atmosfera caíam-lhes em cima e fincavam-se nas penas e no catarro. Novamente, estranharam-se cepticamente um ao outro. Tudo: a aparência, a fuligem lambida no dorso, as penas chamuscadas e mais tudo. Porém, a imagem de um era a imagem do outro e a imagem deste era a imagem do outro e a imagem deste podia ser a própria imagem. Seriam iguais: reflexos idênticos. Nada poderia separar a agora partilha. Ou jogo. Tanto se afeiçoaram os dois, mutuamente, um ao outro.
O pardal marcando o passo curto e a pomba no seu andar dançante e cheio de tiques, caminhadas e voos no bairro deles e dos outros. Aventuras entre aventuras num género de sobrevivência. Um pouco de pão e disjuntam-se em redor, disferindo bicadas de gula, por vezes, acertando em cheio no chão. Uma senhora a atirar grãos de cereais, disjuntam-se em sua confraternização, limpando as valiosas sementes do chão, atribuindo santidade às mãos donde provêm. Alguém a comer, achegam-se e encostam as asas de olhos postos no rosto, olhares de lado, ritmando danças de abutre até, por fim, lhes dar a provar as providências. Não há quem escape.
Certa vez, num dos arranques de asas, a pomba colidiu com a chapa de uma carroçaria. Ainda voou mais uma distância, resistindo ao embate da dor e disfarçando o rouco piar. Tombou o último frio. O pardal despercebido continuou a voar, distanciando-se razoavelmente. Quando poisou, não viu a pomba em qualquer norte. Teria se perdido? Talvez tivesse seguido a sua vida para outras bandas e bandos. Procurou cabisbaixo porém esperançoso em voltar a vê-la entre a Sra. D. Apolónia dos Comboios e as Rotundas do Cais.
Desamparado e já desistido, caminhava e voava à beira rio num estoicismo ríspido e amargo. Fixou os olhos na vista e a incredulidade avisou de um corpo tombado. Aproximou-se brusca, instantânea e rapidamente. Parou. Os pensamentos engoliram os globos do dorso estendido. Já não estavam disjuntos: adiante para sempre separados.
A magreza subiu-lhe à cabeça. Sem a companhia não valia se alimentar. Inaguentava. Teve então uma ideia: iria para onde a companhia estivesse fosse onde fosse. Levantou voo e procurou o pó e venenos usados para aniquilar animais esquecidos e abandonados, espalhados em suspeitos poisos e aposentos.
Encontrou o ansiado pó. Aproximou-se dele e nada fez antes de enfiar profundamente a cabeça e o rosto no pó. Inspirou e voltou inspirar. Encheu todos os sacos de ar. Ergueu a cabeça e só teve tempo de esvaziar tudo o que tinha dentro: o ar, o oxigénio e o sangue de coração parado.

Conhecedor das manhãs do tempo e temporais climas. Eternizado nos valores da proa duma vela onde se sustenta sabiamente. É o capitão altivo: o velho grisalho. Asas negras, rosto malhado e dorso a imitarem-se. A sapiência vivida, atribui-lhe um sorriso imortal. Os olhos de quem sabe e possui todas as certezas, o bico rasgado por génios sorrisos. Comanda o leme do barco: “Brandão” diz a branco no fundo laranja.
Nascido gaivota, envergou as artes de navegar. Velou por fins e afins. Descobriu terras novas. Encontrou caminhos e lendas de terra a mar. Explorou e errou por constelações e demais zénites. Envelheceu. Todos os grandes capitães envelhecem e infantenizam-se na velhice e além tempo. Mas como pode ser capitão, se todos eles têm cabelos brancos?! Sempre teve a brancura nas penas. Então e as discórdias? Nem sequer os capitães são perfeitos! Sempre a brancura do dorso foi manchada de negro.
O mar é agora nada mais que uma contemplação, nostalgia de antigas investidas, acima de tudo, a escola de toda a mestria. Engordou algodão e outros embalsamamentos, poisando no mastro das marinhices. Agora é responsável pelos roteiros do barco que rasga o rio.
Aconchegado no calor do corpo, em pleno nevoeiro do quase despedido Verão, ondula a sabor dos ventos incapazes de disfarce. Feliz e confiante, observa antigos companheiros velando passageiros e histórias.
in "Madrugada de Cacilheiros"

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Como naquele dia...

Como naquele dia...
Sentia frio... apertado na cinza da lã do peito...
Tremia com a mão no guarda-chuva...
Ria tremelicando que a vista era longa.
O frio acariciava a pele,
O coração batia quente;
E... não esqueço...
Não esqueço...
Que perto da baía,
Caminhava em chão rochoso
Onde nasciam jovens gaivotas
(também elas tremelicavam
De frio
E de ânsia pelos pais chegarem).

No intervalo das ondas,
Nas ondas
E as ondas
Repousava o dia.
A alma parecia sentir-se livre,
Com tanta seda e veludo se enganava...
A alma parecia sentir-se livre.
O enfarte escorria longo pelo sangue,
Sentindo o cantar das gaivotas
E demais pássaros.
A tarde era longa
Como assim ditava o fraco calor,
Que o sonho nunca acaba
Se não abrirmos os olhos;
A tarde e as gaivotas assim presume o sonho,
Que o sonho não acaba
Se não abrirmos os olhos.

Nos braços vivos da cruz,
A madeira espera o encosto,
Ansiosamente, espera no seu veludo.
E se estava frio, eu não sabia...
De olhos fechados mostrava a vida
Que não foi mais que o palpitar
Da desistência;
E de olhos fechados procurava encontrar
O néctar desta sopa de peixe e água,
O alimento que repousa,
A areia que, de olhos fechados, é só minha...
E se é só minha não é de ninguém
Pois só tenho mesmo a vida.

in "Profundo Azul"

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Poesia

A poesia tomo o seu lugar sem qualquer procura ou convite, aparece tão simplesmente como se aprende a falar, a escrever, a olhar, a ver, a pensar e a reflectir. As ideias que surgem, sempre de uma forma bruta, tal matéria-prima inata, talvez não imaculada, traduzem-se em palavras, estas que representam os arrepiados e inflamados sintomas da poesia, palavras que procuram superfícies para se tornarem vivas e reais, um fogo que se alastra pela lenha da existência. É um caminho por onde se anda e onde se perscruta a realidade e todos os seus espaços exteriores e interiores: do meio, do corpo, da mente e de tudo onde se pode chegar e alcançar, material e imaterialmente. Isento-me aqui de qualquer exagero no recurso à comparação sobre a poesia porque esta tudo será se admitirmos que a vista será sempre longa e que existe uma eternidade.


Na corrente da escrita encontrei inúmeras formas, geométricas ou apenas espectros, corpos e espaços físicos e irreais. Inevitavelmente, como o ditado de que todos os caminhos vão dar a Roma, a poesia molda a massa onde se agarra, e então surgem as ideias e as descobertas que iluminarão a vida, quer sejam estrelas, lanternas, faróis ou simplesmente a Luz. A poesia leva a um encontro com a verdade que pode ser vista de diferentes prismas, mas manter-se-á inalterada por muito que diferentes olhos e mãos a alterem. Pode ser tudo que será sempre admissível que seja: arte, vício, doença, êxtase, prazer, obsessão, dependência, e tudo aquilo que sente o corpo que a tem.


Estudei o espaço, a realidade, a natureza, a humanidade, a pessoa, eu... Adquiri uma escrita, ou, minimamente, objecto de estudo ou ideia, existencialista e naturalista. Faço esta afirmação porque o trabalho existe, não direi que está feito, e nele, inevitavelmente, existe um rumo. O trabalho está registado, impresso, guardado; ora já passou a barreira do pensado e do ambicionado. Tem uma filosofia, mesmo que barata, se for optado este conceito para a caracterizar e também tudo o mais que surge do nada e surge porque ouve lavra, sementes, regas e algo que cresceu. Desligo qualquer crítica fatalista que sugira a precariedade e o fim do trabalho realizado e que agora se mostra nesta forma de paginação e não num livro ambicionado.


Vivo com a poesia, vivo a meias com a poesia, vive a poesia em mim e de mim, como o sangue que é superior aos humanos e que vive neles e deles, como se pensássemos que sangue há muitos e que precisa de nós para viver e não o contrário. Inadmissível é afirmar que não, pois quem sente é quem saberá... e não quem apenas publica ou critica. Pena é a disputa de ideias, a disputa de um valor poético, a disputa da poesia como a disputa de algo que nos satisfaz, nos move e de que somos dependentes, não certamente por opção de dependência ou insistência.


A certeza da escrita que me faz, são as descobertas que me fez: esse Ser e não ser, o plasma dos seres, que existe e vive no todo orgânico e inorgânico, a imortalidade e a eternidade.


Na madrugada, na hora em que o lobo se move na noite, as palavras sopram como sussurros, pedindo a existência, a escrita num papel. Frutos de insónias, ou pelo menos, regados de insónias, os primeiros projectos foram organizados em títulos: “Profundo Azul” e “Des-en-can-tos”. O projecto “Madrugada de Cacilheiros” tomou vários rumos, ficou numa mistura de ideias e de outras que não se materializaram. Para este projecto muito faltou, ou falta, para ser concretizado. Outros projectos partiram de títulos já definidos, os nomes que definem o tema dos projectos “Inexistência” e “Estranhezas habitadas e um mundo povoado”. O registo destes projectos, tal como o nome que utilizo, foi deferido.


António Sérgio Godinho

sábado, 21 de julho de 2007

Olhar com olhos de morcego

Olho-te como morcego,
Num raio escuro e vácuo.
Não poderei descer à terra
E ser outra vez deus,
Olhando-te com olhos de morcego?
No escuro, na neblina fria,
A geada que se entranha nas folhas e na pele,
Partem-se os ossos e deixa-se de pensar,
Queima-se a carne e deixa-se de pensar;
Partem-se os ossos e já não se sente,
Queima-se a carne e já não sinto.
Do que vem já nada parte,
O que vem quer ficar,
Quer ser deus quando descer
E olhar-te mor-cegamente,
Quer entrar dentro do corpo... da terra,
O frio é demais e demasiado
E as lágrimas sabem azedamente.
Da terra brota suor, sabe-se,
No terror da neblina que nos alimenta,
Que faz encher a barriga com pecado,
Soltando, no que não se vê,
Gritos doridos e prazer.
Não poderei assim descer à terra
E ser deus como se deve,
Olhar-te como queira,
Morcego e noite;
Suor e geada;
Corpo gelado e partido,
Quente por dentro
Onde a mãe terra penetra
Para vir à luz quem venha,
Assim!
Esteja onde estiver, aqui ou não,
Morto e exumado,
Erguer do afogamento
Das ondas que mataram a fome,
As gargantas que incharam para engolir;
Mas elas vão arrebentar, vão morrer,
Pois não sou fome nem o seu sustento.
Pois assim voarei
Com anjos ou não, não os sei,
Descerei à terra
Em dorso de morcego
E olhar-te-ei... ou não,
Na noite como na noite,
Partido pela geada,
Ateado pelo suor,
Sentindo o frio
E as saudades de um ventre
Onde a velhice quer reinar.

in "Profundo Azul"

sábado, 23 de junho de 2007

Humano

O Homem esquecesse a política das
sociedades, essa força que escava mazelas
na vida, interrompendo qualquer deixa
para possibilidades. Teria os olhos na
disciplina e na partilha; ambição de vida,
respirar pureza na alimentação do
bem-querer. O crescimento cai nos
punhos cerrados, quando o ar abafa no
pouco espaço apertado e fétido. Põe-se na
água o vómito do desenvolvimento. O
rumo fez-se com mãos abertas e olhos
orientadores; o rumo já mostrou cruz e
crucificados; falta erguer novamente as
mãos para pegar e afagar a vida. Os
mentirosos não educam; muitas crianças
são desperdiçadas em falsas liberdades e
causas. A fome não é deriva mas deriva
luto. A super-raça, ou tais ideias, apenas
tem ateado extinção, no entanto, os
homens acham-se na raça. As palavras
têm persuadido e aldrabado, nem todos
deveriam conhecer alfabetos; já muitos
idiomas foram corrompidos pela doença
dos homens. Os génios, muito se diz dos
génios, mas esses criaram bombas a
hidrogénio ou esconderam-se em
lâmpadas. A luz cegou quem não quis ver.

Volte o Homem ao início, ao seu início.
Não se julgue só e egoísta nestes mundos.
É espécie sofredora de futilidade e outros
géneros frutíferos. A vida faz-se nas sopas
inorgânicas, em acasos mais pesados que
o tempo. Nunca nenhuma artimanha
criou essências, nem mesmo os
alquimistas viram sangue no ouro. Volte
ao começo, quando tinha medo sem o ser,
quando a certeza era estar só entre tantos
mundos, antes de um abraço ter levado
ao padecimento.

Apraz saber que num dia apenas, muitos
outros dias nascem e novos séculos, até
novas eras. Quando um mundo se vira
para a luz, banha-se na existência, tão
igual a tantas outras, tão pura e inocente.
A luz, pode-se negar a sua consistência,
porém, é o princípio da sobrevivência
porque vê-la é ter certezas de vida. Os
veladores de mundos são chamas nos
fossos da matéria. Beije-se a beleza.
Espalhe-se o aroma do eros e provemos
novamente o sabor dos corpos mortais.
Ameigar com imortalidade, a eternidade
numa só infindável vez.

terça-feira, 19 de junho de 2007

Nova lua

Nova lua que se inicia
Um livro abre-se novo
Fala pela primeira vez
Na exactidão dos parágrafos

Claro nas entrelinhas
O lado lunar virado
Descoberto pelo cansaço
De uma inacabável viagem

Terras vistas nas leituras
Faz-se das palavras o norte
E as estrelas daqueles
Que descobriram o mundo.

sábado, 16 de junho de 2007

... génese...

Seria bonito
um dia viver simplesmente
sentir a beleza e a existência
esquecer para lembrar a criação
recomeçar de novo a partir de um chão
que nunca esquecerá os passeios que teve,
as visitas recebidas, as quedas feridas
e os sorrisos que são a vida como são
os primeiros passos de uma criança – o
início da viagem; a primeira voz – o início
da descoberta; o primeiro gesto – o início
do amor e paixão; o primeiro sorriso – a
eternidade.
Seria bonito
querer ir mais longe e ser eterno,
não esquecer, lembrar é sinónimo de
sobrevivência e manter vivo é a eternidade.
A descoberta de todas as descobertas é o
saber a História que cada carne carrega, é
saber o amor que cada coração procura e
saber querer ser filho para nunca deixar
de amar e manter a voz viva de quem nos
escreveu na eternidade…

O mundo é um abraço,
simples, basta viver…