sábado, 21 de julho de 2007

Olhar com olhos de morcego

Olho-te como morcego,
Num raio escuro e vácuo.
Não poderei descer à terra
E ser outra vez deus,
Olhando-te com olhos de morcego?
No escuro, na neblina fria,
A geada que se entranha nas folhas e na pele,
Partem-se os ossos e deixa-se de pensar,
Queima-se a carne e deixa-se de pensar;
Partem-se os ossos e já não se sente,
Queima-se a carne e já não sinto.
Do que vem já nada parte,
O que vem quer ficar,
Quer ser deus quando descer
E olhar-te mor-cegamente,
Quer entrar dentro do corpo... da terra,
O frio é demais e demasiado
E as lágrimas sabem azedamente.
Da terra brota suor, sabe-se,
No terror da neblina que nos alimenta,
Que faz encher a barriga com pecado,
Soltando, no que não se vê,
Gritos doridos e prazer.
Não poderei assim descer à terra
E ser deus como se deve,
Olhar-te como queira,
Morcego e noite;
Suor e geada;
Corpo gelado e partido,
Quente por dentro
Onde a mãe terra penetra
Para vir à luz quem venha,
Assim!
Esteja onde estiver, aqui ou não,
Morto e exumado,
Erguer do afogamento
Das ondas que mataram a fome,
As gargantas que incharam para engolir;
Mas elas vão arrebentar, vão morrer,
Pois não sou fome nem o seu sustento.
Pois assim voarei
Com anjos ou não, não os sei,
Descerei à terra
Em dorso de morcego
E olhar-te-ei... ou não,
Na noite como na noite,
Partido pela geada,
Ateado pelo suor,
Sentindo o frio
E as saudades de um ventre
Onde a velhice quer reinar.

in "Profundo Azul"