quinta-feira, 20 de setembro de 2007

O Rei, a Companhia e o Capitão

Vagueiam latidos pela madrugada. Não há carros rasgando as estradas, também não rolam pernas nos passeios!

A história de um hediondo rei, uma companhia e de um capitão grisalho.

Pêlo roçado de gasta cor e esfolada, os olhos transmitem a plena confiança de quem percorre um vasto reino encontrado e expandido, quando ali ficou à mercê das horas e do tempo.
Nunca se dirá abandonado: um pássaro fugido da gaiola não abandonou a casa, foi procurar o ninho.
Vai deambulando labirintos pelas gentes despejadas nas suas ruas. Arregala o focinho mostrando os carnívoros caninos: um riso de gozo por ver tão cheio o território que conhece até aos tremores.
Gira e gira, muitas voltas giradas, chega sempre ao couto do dono. Ou, pelo contrário. Cuida do homem, ouve todos os segredos sem nunca os revelar, afaga as carícias trocadas por lambidelas, atura as dores de cabeça e mal-estares e suporta os pontapés, já foram muitos de muitos que lhe deram e sempre reagiu com os dentes em profundas vivas gargalhadas. Contudo, esteja frio ou não, enrola a pele oferecendo calor ao corpo que, como ele, ali se despoisou.
A madrugada desenvencilha-se com latidos num silêncio ominoso.
Ladra. Agora, sim. Ladra... de fúria.
O virar da hora revela-se sozinho. A multidão escoou para fora, entrando em todas as paredes cujas respectivas chaves abriram as portas do conchego e da escapatória.
Estavam tão cheias as ruas com ferozes sons a irromperem pelo ar. Subitamente, todo o peso foi levado tal um pião rodando velozmente até se desprender da gravidade expelindo-se da órbita para dentro do fora.
Os resistentes passeiam ainda sendo as vistas apenas visitas ou turvas. Por demais sejam, não assumem qualquer afronto nem tão pouco enchem vagas.
Quase se cansava para andar à volta de si, eram muitas as pontas de pés de que se tinha de desviar afim de evitar mazelas. Ria-se unicamente. Desvalia acender a garganta pois ignorava-se os seus proclames. Retraía o ar oferecendo à carne a força de um destronado rei.
A madrugada dá-lhe a coroa do palco. Onde está a zanga dos golpes? Ladra. Agora, sim. Ladra... de eminência.
Tantos o desafiaram e ocuparam o caminho mas já não se vêem. Desistiram?! Seja o que for. A sua voz eleva-se no silêncio sem contradições, estende-se por ruas largas e estranhas, dobra esquinas e prolonga-se em frente da frente; os latidos voltam a ladrar e voltam a ladrar num eco de infantaria.
É rei. Nunca disso duvidou. Resistiu a todos os assaltos ficando com o palco só para ele. Por direito. É a sua deixa.
O pano continue a tapar os olhos onde discursa tornando a solidão não dele mas do enredo.

Orientando-se segundo pontos cardeais, um pardal e uma pomba juntam-se num espaço bairrista desde a Sra. D. Apolónia dos Comboios às Rotundas do Cais. Ou invés, disjuntam-se. Apesar de estarem sempre juntos, não teve origem em qualquer base de afecto. O que foi, foi a partilha de alimentos e comidas, de poleiros e céu. Porém, rival partilha. Comem da mesma migalha da mesma côdea de pedaço de víveres, mas não é por fraternidade. É ver quem tira primeiro a fome dentro da barriga. Parece um jogo. Tornou-se num jogo jogado a pares.
Estranhavam-se os dois, um ao outro. Tudo: o aspecto, o tamanho, a cor das penas, o piar e mais tudo. Começaram então a afeiçoar-se. Deixava aos poucos de ser uma partilha rival para ser uma real partilha. Ou o jogo. O tal jogo. Os ares e o peso da atmosfera caíam-lhes em cima e fincavam-se nas penas e no catarro. Novamente, estranharam-se cepticamente um ao outro. Tudo: a aparência, a fuligem lambida no dorso, as penas chamuscadas e mais tudo. Porém, a imagem de um era a imagem do outro e a imagem deste era a imagem do outro e a imagem deste podia ser a própria imagem. Seriam iguais: reflexos idênticos. Nada poderia separar a agora partilha. Ou jogo. Tanto se afeiçoaram os dois, mutuamente, um ao outro.
O pardal marcando o passo curto e a pomba no seu andar dançante e cheio de tiques, caminhadas e voos no bairro deles e dos outros. Aventuras entre aventuras num género de sobrevivência. Um pouco de pão e disjuntam-se em redor, disferindo bicadas de gula, por vezes, acertando em cheio no chão. Uma senhora a atirar grãos de cereais, disjuntam-se em sua confraternização, limpando as valiosas sementes do chão, atribuindo santidade às mãos donde provêm. Alguém a comer, achegam-se e encostam as asas de olhos postos no rosto, olhares de lado, ritmando danças de abutre até, por fim, lhes dar a provar as providências. Não há quem escape.
Certa vez, num dos arranques de asas, a pomba colidiu com a chapa de uma carroçaria. Ainda voou mais uma distância, resistindo ao embate da dor e disfarçando o rouco piar. Tombou o último frio. O pardal despercebido continuou a voar, distanciando-se razoavelmente. Quando poisou, não viu a pomba em qualquer norte. Teria se perdido? Talvez tivesse seguido a sua vida para outras bandas e bandos. Procurou cabisbaixo porém esperançoso em voltar a vê-la entre a Sra. D. Apolónia dos Comboios e as Rotundas do Cais.
Desamparado e já desistido, caminhava e voava à beira rio num estoicismo ríspido e amargo. Fixou os olhos na vista e a incredulidade avisou de um corpo tombado. Aproximou-se brusca, instantânea e rapidamente. Parou. Os pensamentos engoliram os globos do dorso estendido. Já não estavam disjuntos: adiante para sempre separados.
A magreza subiu-lhe à cabeça. Sem a companhia não valia se alimentar. Inaguentava. Teve então uma ideia: iria para onde a companhia estivesse fosse onde fosse. Levantou voo e procurou o pó e venenos usados para aniquilar animais esquecidos e abandonados, espalhados em suspeitos poisos e aposentos.
Encontrou o ansiado pó. Aproximou-se dele e nada fez antes de enfiar profundamente a cabeça e o rosto no pó. Inspirou e voltou inspirar. Encheu todos os sacos de ar. Ergueu a cabeça e só teve tempo de esvaziar tudo o que tinha dentro: o ar, o oxigénio e o sangue de coração parado.

Conhecedor das manhãs do tempo e temporais climas. Eternizado nos valores da proa duma vela onde se sustenta sabiamente. É o capitão altivo: o velho grisalho. Asas negras, rosto malhado e dorso a imitarem-se. A sapiência vivida, atribui-lhe um sorriso imortal. Os olhos de quem sabe e possui todas as certezas, o bico rasgado por génios sorrisos. Comanda o leme do barco: “Brandão” diz a branco no fundo laranja.
Nascido gaivota, envergou as artes de navegar. Velou por fins e afins. Descobriu terras novas. Encontrou caminhos e lendas de terra a mar. Explorou e errou por constelações e demais zénites. Envelheceu. Todos os grandes capitães envelhecem e infantenizam-se na velhice e além tempo. Mas como pode ser capitão, se todos eles têm cabelos brancos?! Sempre teve a brancura nas penas. Então e as discórdias? Nem sequer os capitães são perfeitos! Sempre a brancura do dorso foi manchada de negro.
O mar é agora nada mais que uma contemplação, nostalgia de antigas investidas, acima de tudo, a escola de toda a mestria. Engordou algodão e outros embalsamamentos, poisando no mastro das marinhices. Agora é responsável pelos roteiros do barco que rasga o rio.
Aconchegado no calor do corpo, em pleno nevoeiro do quase despedido Verão, ondula a sabor dos ventos incapazes de disfarce. Feliz e confiante, observa antigos companheiros velando passageiros e histórias.
in "Madrugada de Cacilheiros"