sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Como naquele dia...

Como naquele dia...
Sentia frio... apertado na cinza da lã do peito...
Tremia com a mão no guarda-chuva...
Ria tremelicando que a vista era longa.
O frio acariciava a pele,
O coração batia quente;
E... não esqueço...
Não esqueço...
Que perto da baía,
Caminhava em chão rochoso
Onde nasciam jovens gaivotas
(também elas tremelicavam
De frio
E de ânsia pelos pais chegarem).

No intervalo das ondas,
Nas ondas
E as ondas
Repousava o dia.
A alma parecia sentir-se livre,
Com tanta seda e veludo se enganava...
A alma parecia sentir-se livre.
O enfarte escorria longo pelo sangue,
Sentindo o cantar das gaivotas
E demais pássaros.
A tarde era longa
Como assim ditava o fraco calor,
Que o sonho nunca acaba
Se não abrirmos os olhos;
A tarde e as gaivotas assim presume o sonho,
Que o sonho não acaba
Se não abrirmos os olhos.

Nos braços vivos da cruz,
A madeira espera o encosto,
Ansiosamente, espera no seu veludo.
E se estava frio, eu não sabia...
De olhos fechados mostrava a vida
Que não foi mais que o palpitar
Da desistência;
E de olhos fechados procurava encontrar
O néctar desta sopa de peixe e água,
O alimento que repousa,
A areia que, de olhos fechados, é só minha...
E se é só minha não é de ninguém
Pois só tenho mesmo a vida.

in "Profundo Azul"

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

A Poesia

A poesia tomo o seu lugar sem qualquer procura ou convite, aparece tão simplesmente como se aprende a falar, a escrever, a olhar, a ver, a pensar e a reflectir. As ideias que surgem, sempre de uma forma bruta, tal matéria-prima inata, talvez não imaculada, traduzem-se em palavras, estas que representam os arrepiados e inflamados sintomas da poesia, palavras que procuram superfícies para se tornarem vivas e reais, um fogo que se alastra pela lenha da existência. É um caminho por onde se anda e onde se perscruta a realidade e todos os seus espaços exteriores e interiores: do meio, do corpo, da mente e de tudo onde se pode chegar e alcançar, material e imaterialmente. Isento-me aqui de qualquer exagero no recurso à comparação sobre a poesia porque esta tudo será se admitirmos que a vista será sempre longa e que existe uma eternidade.


Na corrente da escrita encontrei inúmeras formas, geométricas ou apenas espectros, corpos e espaços físicos e irreais. Inevitavelmente, como o ditado de que todos os caminhos vão dar a Roma, a poesia molda a massa onde se agarra, e então surgem as ideias e as descobertas que iluminarão a vida, quer sejam estrelas, lanternas, faróis ou simplesmente a Luz. A poesia leva a um encontro com a verdade que pode ser vista de diferentes prismas, mas manter-se-á inalterada por muito que diferentes olhos e mãos a alterem. Pode ser tudo que será sempre admissível que seja: arte, vício, doença, êxtase, prazer, obsessão, dependência, e tudo aquilo que sente o corpo que a tem.


Estudei o espaço, a realidade, a natureza, a humanidade, a pessoa, eu... Adquiri uma escrita, ou, minimamente, objecto de estudo ou ideia, existencialista e naturalista. Faço esta afirmação porque o trabalho existe, não direi que está feito, e nele, inevitavelmente, existe um rumo. O trabalho está registado, impresso, guardado; ora já passou a barreira do pensado e do ambicionado. Tem uma filosofia, mesmo que barata, se for optado este conceito para a caracterizar e também tudo o mais que surge do nada e surge porque ouve lavra, sementes, regas e algo que cresceu. Desligo qualquer crítica fatalista que sugira a precariedade e o fim do trabalho realizado e que agora se mostra nesta forma de paginação e não num livro ambicionado.


Vivo com a poesia, vivo a meias com a poesia, vive a poesia em mim e de mim, como o sangue que é superior aos humanos e que vive neles e deles, como se pensássemos que sangue há muitos e que precisa de nós para viver e não o contrário. Inadmissível é afirmar que não, pois quem sente é quem saberá... e não quem apenas publica ou critica. Pena é a disputa de ideias, a disputa de um valor poético, a disputa da poesia como a disputa de algo que nos satisfaz, nos move e de que somos dependentes, não certamente por opção de dependência ou insistência.


A certeza da escrita que me faz, são as descobertas que me fez: esse Ser e não ser, o plasma dos seres, que existe e vive no todo orgânico e inorgânico, a imortalidade e a eternidade.


Na madrugada, na hora em que o lobo se move na noite, as palavras sopram como sussurros, pedindo a existência, a escrita num papel. Frutos de insónias, ou pelo menos, regados de insónias, os primeiros projectos foram organizados em títulos: “Profundo Azul” e “Des-en-can-tos”. O projecto “Madrugada de Cacilheiros” tomou vários rumos, ficou numa mistura de ideias e de outras que não se materializaram. Para este projecto muito faltou, ou falta, para ser concretizado. Outros projectos partiram de títulos já definidos, os nomes que definem o tema dos projectos “Inexistência” e “Estranhezas habitadas e um mundo povoado”. O registo destes projectos, tal como o nome que utilizo, foi deferido.


António Sérgio Godinho