domingo, 23 de dezembro de 2007

Adamastor

Quando o Adamastor vivia noutro hemisfério, longe de saber outras existências e lugares, exercia diariamente o trabalho de porteiro marítimo: uma espécie de guardador dos mares cujo objectivo era o de velar os confins transmarítimos. Comportava-se como um farol cuja luz repelia aqueles que avistasse.
Sentava-se numa rocha elevada com forma de trono, situada num enorme cabo estendido no oceano, adentrando nele. Daí mirava toda a planície marinha.
Quando alguém se aproximava com posse e rosto desconhecidos, desferia ventos fortes do peito afastando fosse o que fosse. Estes ventos ponham os homens de tal modo assustados e fracos que alguns vislumbravam temíveis monstros, gigantes e guerreiros. Rigoroso a cumprir a sua tarefa, nada passava por ele a não ser ondas; as velas torneavam meia volta e seguiam para outros lados, de onde provinham, ou então, os mastros afundavam-se.
Certa vez, um dado número de naus aproximava-se da sua fronteira, decididas a passar por ele. Nelas proferiam-se sonoros diálogos que se espalhavam pelo ar e mar.
Atento às conversas, o Adamastor ria. Porém, o interesse foi subindo. Havia algo naquela pronúncia capaz de transmitir a perfeita ideia de beleza: um lugar à beira rio, magistral e com longas paisagens cheias de cores radiadas do céu. Deveras deslumbrante.
Completamente imbuído nos pensamentos, deixou de atender as naus que penetravam em meridianos desconhecidos. Ainda encheu o peito, o qual disparou um leve suspiro de emoção e sonho. Cansado do trabalho, ergueu-se e partiu à descoberta da cidade referida nos encantos das palavras ouvidas.
Entretanto, nas naus, o júbilo ganhara voz e os marinheiros abriam a porta da imaginação.
À luz do maravilhoso e da epopeia, poetas revigoraram a alma na eternidade da mensagem e da história.

Não foi há muito que o sol andava escondido por pelugens assanhadas. Agora não! Agora, ele mostra-se.
As árvores esganiçadas no céu caracterizam o enredo, um pouco de poluição em redor e demais janelas espalhadas por aí. Cheira a pólen e a folhas do mato, ouvem-se piares e o vento quente rasando nos troncos e tijolos. A carne mais leve e despida desenha voltas nos passeios, voltas trocadas e truncadas como bebedeiras.
Abatem-se mãos ocultas neste longo soalho, fazendo saltar e agitar o sangue, nada mais, desejoso por se alucinar.
Poisadas as armas, descansadas as forças, irritam-se euforias que encaminham sonhos para poleiros e lugares afrodisíacos.
Agarra-se ao volante e ao cinto de segurança e, o fumo faz estrada para as tormentas sem cabo.
Pisa-se o palco, entra-se em cena, o pano corrido e todos os adereços pintam uma paisagem longa, tudo feito ao pormenor; o palco cheio de luz e vistas, não há dúvida, uma janela infinita.
Tão belo miradouro!!! Será das vistas, será da cidade, do rio, será do cheiro, do fumo que se respira, serão as histórias,...as histórias..., será ele próprio? Tão belo miradouro.

Velha e sempre meninamente bonita princesa, teu nome é Lisboa e podia ser nome de flor; meu nome, agora, não interessa.
Teu fado canta-se do Bairro à Sé, a voz e as cordas sempre em coro, deliciando-te com trinados e melodias. Ouvirás, eternamente, a saúde de Amália e Paredes; nem precisas de pedir, suas músicas já correm no ventre do vento.
Queria eu que fosses mulher, não para beijos ou amor, mas para passear, passear de mãos dadas pelos jardins dos Campos, Grande ou Pequeno, passear pelos passeios e pelo rio e, sermos um conto sem palavras.
Que segredos guardas, que se elevam, como ascensão de lava ou onda sísmica e a pedra transforma-se em muralhas, em mortalhas e, para mais, esconderijos?
O grande Adamastor fugiu do cabo porque ouviu falar de ti; não foi vencido. Fugiu do cabo, como já dissera, e foi à tua procura.
Ficou tão deliciado, sentiu-se tão apequenado perante ti que se escondeu na pedra, espreitando com a cabeça de fora, rasgada por um sorriso de menino tímido, sem meter medo.
Na varanda onde se encontra, vê-se a beleza de todo um esplendor, não do país, da natureza.

O fumo bêbado conta histórias, algumas tão velhas que cheiram mal.

Mendigos!

Talvez?!

Suas casas são a rua!

Ou casaram com Lisboa?!

Será?!

Saindo do miradouro, voltando para outro palco, indicado pelos carris do eléctrico, toma-se um café. Com sorte, ainda encontramos o poeta, que tanto escreveu, que tanto deu vida a outros eternizados em palavras.
Um dia, foi ver as vistas, a criação da natureza, a criação do reino, e viu aquele sorriso tímido apelidado de monstro.
Comovido, depois de dedos de conversa, escreveu-lhe uma carta; nessa carta, também ele o chamou de monstro...! Chamou de monstro a esse menino que sorri do seu esconderijo...!

Calma!

Foi o próprio menino que pediu!

A sua história já estava feita e nela ele era grande, muito grande como o tempo, como agora ainda se o vê!

Nas suas escritas bucólicas ou românticas ou como o outro que se suicidou por paixão por tranças loiras..., escreveu a metáfora e a hipérbole de tão linda história do menino que bateu na mãe, do João que mudou a dinastia, dos marinheiros que escreveram a longa poesia da grandiosa expansão...!

No final!

No final de tudo!

Todos acordaram numa madrugada!

in "Madrugada de Cacilheiros"

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